No Brasil, as listas de espera por órgãos são estaduais e obedecem a critérios de precedência, gravidade ou compatibilidade. Rede integrada funciona para a identificação e transporte dos órgãos pelo país
Manuela trabalha como coordenadora de transplantes em um hospital de Madri. É ela quem organiza o processo de doação de órgãos, desde a identificação de possíveis doadores até a abordagem às famílias que perderam seus entes queridos. Uma noite, depois do plantão, vê seu filho morrer em um trágico atropelamento. Esse é o início do filme Tudo sobre minha mãe, do cineasta espanhol Pedro Almodóvar (1999). Líder mundial em doação de transplantes de órgãos há mais de 20 anos, o modelo de organização em rede espanhol foi a referência no Brasil para o Sistema Nacional de Transplantes, coordenado pelo Ministério da Saúde.
A Organização Nacional de Transplantes (ONT) da Espanha credita parte do êxito à comunicação com a sociedade, que leva o tema até para as telas de cinema. O trabalho da personagem de Almodóvar é crucial no funcionamento do Sistema Nacional de Transplantes do Brasil.
O sistema conta com uma Central Nacional de Transplantes, cujo trabalho é semelhante ao da ONT e é coordenada pelo Ministério da Saúde, que faz a intermediação com as 26 centrais estaduais e a do Distrito Federal, que organizam as listas de espera por órgãos nos estados.
Em todos os hospitais que realizam transplantes, há uma comissão interna. Atualmente, são 574 comissões formadas por uma equipe multidisciplinar. Essas comissões organizam as rotinas e os protocolos, inclusive de morte encefálica, que possibilitam o processo de doação de órgãos e tecidos para transplantes, pela abordagem das famílias, e se encarregam da captação e manutenção dos órgãos até que o transplante seja feito. Também integram a rede 72 Organizações de Procura de Órgãos (OPOs), que acompanham a viabilidade de doações na rotina dos hospitais e notificam à Central sobre a possibilidade de realização de transplante, dando início ao processo que vai levar o órgão disponível ao paciente adequado.
O encaixe entre o receptor e o doador considera compatibilidade sanguínea, peso, altura e às vezes condições clínicas, a depender do histórico de saúde do receptor e do doador. Todos os hospitais que realizam transplantes possuem essa estruturas, mesmo os hospitais privados, como o Hospital Brasília, por exemplo.
Quando a central estadual é avisada da disponibilidade de um órgão no estado, a consulta é feita ao primeiro da lista local. Confirmadas as condições preliminares de compatibilidade e gravidade, disponíveis no sistema, o hospital que incluiu o paciente na lista é acionado e avisa o paciente da possibilidade de um órgão.
“Cada estado tem uma lista. Quando é notificada, consulta os pacientes. Se não houver receptor, avisa à Central Nacional, que verifica a compatibilidade em outros locais e cuida da logística”, explica Joseane Gomes Fernandes Vasconcellos, diretora da Central do Distrito Federal.
“O paciente já começa a ser preparado para receber o órgão, mesmo que o transplante não se confirme por alguma intercorrência. Tudo tem que ser ágil, por causa do tempo de isquemia, ou seja, o número de horas que cada órgão pode ficar fora do corpo”, explica Mayara Casarian, enfermeira que integra a equipe de transplantes do Hospital Brasília. Além de abordar as famílias, em casos de morte encefálica de pacientes, ela acompanha a equipe de captação de órgãos, quando a Central de Transplantes do Distrito Federal notifica que há um órgão compatível para um paciente do Hospital Brasília.
“Recentemente, fomos buscar um fígado em Goiânia. Tudo certo. O órgão era saudável. Compatibilidade confirmada e o paciente já estava sendo preparado. Na volta, a estrada estava interditada por um protesto. Não contávamos com isso. Nesses casos, acionamos os batedores da polícia militar ou o Corpo de Bombeiros, que sabem que podem ser requisitados por uma central de transplantes. Eu já estava quase telefonando para a polícia, quando o trânsito foi liberado. Deu tudo certo e o transplante foi realizado com êxito”, conta.
Doação Presumida
Outro fator que explica o desempenho da Espanha é a oferta de órgãos. O país tem uma taxa de 48,2 doações por milhão de pessoa (pmp), bem mais alta do que a taxa da União Europeia, de 22 ppm, e dos Estados Unidos, 32 pmp. No Brasil, a taxa é de 17 doações pmp e a meta da Associação Brasileira de Transplantes (ABTO) é chegar 20 pmp. Segundo a legislação espanhola, toda pessoa falecida é doadora, a menos que tenha declarado o contrário em vida.
Em 1997, quando publicou a Lei dos Transplantes (Lei nº 9.434) e o Decreto nº 2.268, para instituir e regulamentar o Sistema Nacional de Transplantes, o Brasil adotou a doação presumida. Como na Espanha, em vida, era necessário registrar, por exemplo, na cédula de identidade, o desejo de não ser doador de órgãos. Mesmo assim, a família era consultada.
O mecanismo não funcionou e foi revogado pelo Lei nº10.211/2001. Profissionais que trabalham com transplantes relatam que houve desconfiança da sociedade com relação ao interesse na aferição na morte cerebral, já que o Sistema Público de Saúde (SUS) remunera os hospitais pelos procedimentos, portanto, pelos órgãos captados.
De acordo com o presidente da ABTO, Paulo Pêgo, vários países adotam a doação presumida. “Mas, para isso, é preciso uma confiança muito forte nas instituições. No Brasil, a questão está mais relacionado com o fato de as pessoas entenderem mais o funcionamento do sistema. Na minha opinião, não seria ruim se a pessoa tivesse a opção de declarar, em vida, que é doador e não o contrário, como era, quando tinha que declarar que não era”, opina.
Mitos
Um terceiro fator que distancia e que leva o Brasil, a maior rede pública de transplante do mundo, a ter resultados mais modestos do que a Espanha e os Estados Unidos, o que mais realiza transplantes em números absolutos, é que, nesses países, são realizados transplantes de coração parado, ou seja, também de paciente com morte cardíaca e não apenas encefálica, como estabelece a legislação no Brasil.
Se o paciente não é reanimável, coloca-se o corpo em um equipamento que vai fazer a compressão toráxica, que vai simular o batimento cardíaco, assim como no caso da morte encefálica. Mas o processo de extração nesse tipo de doador é mais urgente e delicado. A entrevista com a família tem que acontecer muito rápido. É altamente complexo e com custo muito elevado”, explica Daniela Ferreira Salomão, chefe da Coordenação-Geral do Sistema Nacional de Transplantes do Ministério da Saúde.
Para ela, no Brasil, esse tipo de doação poderia fomentar ainda mais mitos, como ocorreu na época da doação presumida, que gerou especulação sobre tráfego de órgãos. “Não existe tráfico de órgão no Brasil. O sistema é muito fechado. Não há brecha para isso acontecer. A doação de órgão não é uma cirurgia simples. Depende de toda uma estrutura para cuidar do doador, fazer a extração do doador em centro cirúrgico. Tem uma logística complexa e todo esse trabalho envolve um grande número de pessoas. Os brasileiros não precisam se preocupar com isso”, assegura Daniela.
12 horas para decidir
É difícil explicar, mas é fácil entender as emoções da vendedora Elda de Oliveira Barros, de 43 anos, quando, há dois anos, ela perdeu o filho Derick Nardelli de Souza (foto), de 19 anos, baleado em um assalto. Ela conta que, assim que Derick chegou ao Hospital Regional João de Freitas, em Arapongas (PR), ao ser socorrido, iniciou-se o protocolo de morte cerebral, processo que foi repetido duas vezes por dois médicos diferentes e confirmado por um terceiro médico de outro hospital.
“Uma equipe nos abordou. Era uma sexta-feira à noite. Foram muito respeitosos e nos deram tempo para decidir. Levamos 12 horas para tomar a decisão. Não foi fácil. Neste momento, ninguém está em condições de decidir nada. Fomos para casa pensar. Quando meu pai morreu, eu falei em doar os órgãos, o que não ocorreu por causa das condições de saúde dele. O Derick disse que, se morresse, queria que seus órgãos fossem doados. Eu nem levei a sério. Você nunca pensa que um filho vai morrer antes. Mas meu outro filho se lembrou do diálogo, e foi quando decidimos”, conta Elda.
“É muito importante que as famílias conversem sobre o tema em casa. É muito difícil decidir isso na hora da perda. Geralmente, as famílias que aceitam doar os órgãos já tiveram a conversa antes” , diz Gislaine Albuquerque, enfermeira da equipe de transplantes do Hospital Brasília, acostumada a fazer a abordagem.
Transporte pela FAB e voos comerciais
Em um país de dimensões continentais, fazer um órgão cruzar o território a tempo de ser utilizado com sucesso em um transplante, considerando o tempo de isquemia fria (TIF), ou seja, máximo de horas que pode ficar fora do corpo, é desafiador. No caso do coração, são apenas quatro horas, o que inviabiliza a captura, por exemplo, de um coração em Rondônia para ser transplantado em Porto Alegre, depois de três horas e meia de voo, sem contar os percursos terrestres.
O TIF do pulmão também é curto, de quatro a seis horas. São 12 horas para fígado e pâncreas e até 24 horas, para rins. Por isso, uma vez identificados doador e receptor, se a distância tiver que ser vencida por via aérea, o trabalho em rede ganha ainda mais relevância e o sucesso depende de agilidade. O Centro de Gerenciamento da Navegação Aérea (CGNA) coordena a distribuição dos voos. Para isso, possui equipe da Central Nacional de Transplantes (CNT) para gerenciar a logística de distribuição.
Recebida a demanda da CNT, começam as buscas pelo voo adequado mais próximo, primeiro pela malha comercial. Quando o trecho não é atendido pelas linhas aéreas, o Comando de Operações Aeroespaciais (Comae) da Força Aérea Brasileira (FAB) é acionado.
Em 2017, o Decreto nº 9175, de outubro, assinado pelo ex-presidente Michel Temer, determinou que a FAB mantenha, permanentemente, uma aeronave disponível para o transporte de órgãos. Por isso, há tripulações de sobreaviso em Manaus (AM), Belém (PA), Natal (RN), Brasília (DF), Rio de Janeiro (RJ) e Canoas (RS). Até setembro, a FAB transportou 121 órgãos. “É um trabalho que exige muita coordenação. Muitas vezes não tem aeroporto perto para o pouso. Às vezes, é preciso contar com o Corpo de Bombeiros para fazer o trajeto terrestre até o hospital. Já transportei órgão de criança e, em outros casos, pessoas em coma. Procuro isolar o que está acontecendo no avião e agir como se a aeronave estivesse vazia. A emoção fica para depois”, conta o tenente Daniel Colchete Pinto, piloto que já participou da missão várias vezes.
Asas do Bem
Desde 2001, as companhias aéreas comerciais colaboram transportando órgãos gratuitamente. Mas, a partir de 2014, a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) institucionalizou a participação das companhias com o programa Asas do Bem, que inclui parcerias com as companhias aéreas, o Ministério da Saúde, a Central Nacional de Transplantes, o Centro de Gerenciamento da Navegação Aérea (CGNA), órgão do Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea), e operadores aeroportuários.
As aeronaves que transportam órgãos têm prioridade de pouso e decolagem. De acordo com a Abear, às vezes, os pilotos que transportam órgãos fazem o comunicado aos passageiros, como forma de incentivar a doação. Não é uma regra, mas uma opção do piloto. Segundo a Abear, no primeiro semestre, as companhias aéreas transportaram 626 órgãos.