Ricardo Viana, de 50 anos, foi empurrado e chamado de ‘macaco’, em agosto, no Lago Sul. Na Semana da Consciência Negra, policial civil negro relembra caso e fala sobre representatividade.

Empurrado e chamado de “macaco” dentro de uma lanchonete no Lago Sul – região nobre do Distrito Federal – o delegado Ricardo Viana relembra que esse não foi o primeiro ataque racista que sofreu ao longo dos 24 anos de profissão. “Infelizmente, também não será o último”, diz.
Formado em direito e em educação física, o policial civil, de 50 anos, é delegado-chefe da 6ª DP, no Paranoá. Na semana dedicada à Consciência Negra – data celebrada no dia 20 de novembro – ele conversou com o G1 sobre os desafios da carreira, sendo um homem negro.
“Desde que me entendo por gente, sou comparado. O preconceito racial, na forma de racismo, permeia todas as classe sociais. Quando você ascende economicamente, é tolerado, mas quando há um confronto de ideias, essa ferida é tocada.”
O ataque racista contra Viana ocorreu em agosto e foi registrado como injúria racial. O agressor, também morador do Lago Sul, ficou preso e foi liberado após pagar a fiança de R$ 3,1 mil.
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A polícia encontrou porções de maconha no veículo do suspeito. A reportagem não conseguiu contato com a defesa dele.
Após o caso, o inquérito foi remetido ao Ministério Público (MPDFT), que denunciou o autor à Justiça, também por vias de fato e injúria. Segundo o delegado vítima do ataque, o advogado do agressor alegou “insanidade mental do cliente”.
“Vejo um abrandamento muito sensível das sanções. Esse cidadão que me ofendeu ficou encarcerado por conta do plantão, já que o Judiciário não pôde avaliar a conduta dele. Mas, se houvesse um juiz na hora, iria soltá-lo”, disse Ricardo.
Racismo ostensivo e preconceito velado
Ricardo Viana afirma que, no início da carreira, quando ficou à frente da delegacia de Ceilândia, se deparou com o que chama de “preconceito racial velado”, diferente do ataque ostensivo que sofreu na lanchonete.
Ele lembra que foi abordado por um advogado que “queria falar com o delegado”. Ao se identificar como chefe da delegacia, o homem se recusou a falar com ele, por não reconhecê-lo como tal.
O caso foi registrado na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF), por “falta de atendimento”. Para o delegado, “o advogado interpretou que aquele policial civil negro não seria o chefe [da delegacia]. São situações que acontecem no dia a dia”, diz.
“Nós, negros, somos maioria da população, clamamos por mais representatividade, não só na instituição policial, mas nas demais áreas. Precisamos de políticas que empurrem pessoas negras a vencerem o racismo”, aponta.
“Conquistamos a liberdade após mais de 300 anos de escravidão, agora, o Estado precisa reparar a covardia que fez com nossos parentes, para que um dia a gente construa uma sociedade onde negros e brancos convivam diante das diferenças, de forma mais igualitária.”
Inspiração
Após sofrer o ataque racista na lanchonete, Viana afirma que passou a ser mais reconhecido na comunidade – à época ele trabalhava na 3ª Delegacia de Polícia, no Cruzeiro.
“Hoje, outros negros que me veem na minha posição, elogiam e falam no anseio de estar ali, como delegado. Então, dou conselhos positivos”, conta.
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Após o caso, o policial também recebeu manifestações de apoio e de afeto (veja foto acima). “Recebi cartas de famílias na delegacia, de pessoas que diziam que eu as representava”, lembra o policial.
“O preconceito está em todas as classes sociais. Sou autoridade, em tese as pessoas me respeitam como delegado, e em uma situação comum, com minha filha, fui confrontado por alguém que achava que eu não podia ocupar mesmo espaço”, comenta.
“Isso me despertou para o fato que tenho que fazer algo a mais por meus pares, porque sou igual aos meus irmãos. Essa representatividade tem que servir de algo”, diz o delegado.
Injúria racial
Outro caso de injúria racial ganhou holofotes na última semana. Na quarta-feira (11), a atendente de uma pizzaria em um shopping no Setor de Clubes Sul procurou a delegacia para registrar uma queixa contra Frederick Wassef – ex-advogado da família do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
A funcionária da Pizza Hut afirma que foi chamada de “macaca” após Wassef reclamar que a pizza “não estava boa”. O caso teria ocorrido no domingo (8) e foi registrado na 1ª Delegacia de Polícia, na Asa Sul.
A vítima contou aos investigadores que o advogado perguntou se ela teria comido a pizza, e funcionária respondeu que não. Com a negativa, de acordo com o boletim de ocorrência, Wassef teria dito em voz alta:
“Você é uma macaca! Você come o que te derem.”
Por meio de nota, Wassef negou o ocorrido. De acordo com ele, “tudo que foi dito pela funcionária são mentiras e calúnias”.
Casos no DF
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Decrin – delegacia de repressão aos crimes de intolerância do DF — Foto: GDF/DIVULGAÇÃO
Apesar dos casos recentes, a Secretaria de Segurança Pública informou que os registros de injúria racial caíram 11% no DF. De janeiro a outubro deste ano, houve 325 ocorrências do tipo, contra 367 nos mesmos meses de 2019.
Com relação aos casos de racismo, previsto na Lei nº 7.716/89, foram contabilizadas dez ocorrências na capital, de janeiro a outubro de 2020, sendo dois registros desse tipo de crime no ano passado. O crime é imprescritível e inafiançável.
Como denunciar
De acordo com a legislação brasileira, o crime de racismo é aplicado quando a ofensa discriminatória é contra um grupo ou coletividade. Por exemplo, impedir que negros tenham acesso a estabelecimento comercial privado.
Já com base no Código Penal, injúria racial se refere a ofensa à dignidade ou decoro, utilizando palavra depreciativa referente a raça e cor com a intenção de ofender a honra da vítima.
Os casos podem ser denunciados presencialmente na delegacia ou por meio da delegacia online.