Além da “clara” limitação para pessoas surdas, o aplicativo foi alvo de reclamação de pessoas cegas — já que foi disponibilizado sem configurações que permitam a utilização de leitores de tela
Duas informações são consideradas importantes para você se familiarizar com a rede social mais falada do momento, o Clubhouse.
Primeiro, é uma plataforma com salas de conversas ao vivo, apenas por áudio.
Segundo, para entrar, são necessárias as seguintes condições: ter um iPhone e ser convidado por um amigo que já está usando o aplicativo.
Mas, para pessoas com deficiência auditiva e visual, uma terceira questão sempre aparece: “ela é acessível?”.
E a resposta para esse caso, pelo menos num primeiro momento, é: não.
“Pessoas com deficiência são acostumadas a ser invisíveis, mas eu me recuso a fazer isso”, disse à BBC News Brasil a escritora Paula Pfeifer, que usou suas redes sociais para apontar problemas de acessibilidade na nova plataforma — e foi criticada por isso.
Com deficiência auditiva e líder do projeto Surdos Que Ouvem, ela chegou a ser acusada de fazer “militância chata” por levantar a voz para um problema recorrente que enfrenta ao tentar participar de “novidades” na internet.
“Desde que me posicionei, eu preciso ‘provar’ que acessibilidade é importante. Acessibilidade não é um luxo. Na verdade, ela é pré-requisito básico de produtos e serviços e deve ser pensada desde a sua concepção, e não para ‘tapar buraco’ depois”.
Além da “clara” limitação para pessoas surdas, o aplicativo foi alvo de reclamação de pessoas cegas — já que foi disponibilizado sem configurações que permitam a utilização de leitores de tela.
https://www.instagram.com/p/CK_wFclhccF/
Lançado em maio de 2020 em versão beta (testes), o Clubhouse ganhou grande popularidade no Brasil e em boa parte do mundo nas últimas semanas.
Figuras conhecidas, como o empresário e fundador da Tesla Elon Musk e a apresentadora Oprah Winfrey, participaram de transmissões ao vivo e ajudaram a popularizar ainda mais a plataforma. No Brasil, nomes como Caetano Veloso e Anitta apareceram por lá.
Segundo o portal Statista, especializado em estatísticas e bases de dados, o número de usuários do Clubhouse em janeiro era de 2 milhões, ante 600 mil em dezembro de 2020.
Analistas que fazem esse monitoramento, porém, já apontam até 10 milhões de pessoas conectadas em fevereiro.
Na loja da Apple, o aplicativo criado por Rohan Seth, ex-funcionário do Google, e Paul Davison, empreendedor do Vale do Silício, aparecia como o segundo mais baixado em 16 de fevereiro.
Mas, apesar de todo esse interesse, pessoas com deficiência lembram que, mais uma vez, elas foram deixadas para depois.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, cerca de 466 milhões de pessoas tem algum nível de deficiência auditiva no mundo. 596 milhões de pessoas tinham deficiência visual, sendo 43 milhões de pessoas cegas, segundo levantamento recém-divulgado da The Lancet Global Health.
‘Não olham para a acessibilidade digital’
Para Marcelo Sales, designer, professor e especialista em acessibilidade digital, “já passou da hora” de as empresas pensarem em ferramentas inclusivas desde a concepção de um produto. Foi aí, na sua avaliação, a principal falha do Clubhouse.
“É utopia achar que teremos produtos 100% acessíveis. Eu posso até compreender que é um produto novo, que ainda precisa ser validado, em teste. O que não faz sentido é não incluir ferramentas que podem estar num primeiro momento e informar ao público o que estão planejando para um segundo momento. Ficou claro que eles não olharam pra isso.”
Um exemplo de algo que poderia estar num “primeiro momento” seria disponibilizar botões e outros elementos essenciais codificados que pudessem ser captados por um leitor de tela. É algo “ridiculamente fácil de ser implementado”, segundo Sales.
Sem os leitores de tela funcionando, pessoas cegas e com baixa visão usuárias de smartphones não conseguem saber que elementos há ali e onde precisam clicar.
Foi o que aconteceu com o jornalista e ativista Gustavo Torniero, que tentou participar de conversas no Clubhouse quando o aplicativo começou a se popularizar.
Após duas horas participando de uma sala, Torniero teve a chance de falar. Mas não conseguiu abrir o microfone, pela falta de acessibilidade para leitores de tela.
“Foi frustrante. Imagina você ouvir a moderadora da sala (que obviamente não sabia de nada disso e era uma fofa) dizer: ‘Torniero, você precisa ativar o botão para aceitar o convite’. Mas não tem como eu fazer isso se o app não tem uma boa acessibilidade para pessoas cegas”, relatou o jornalista no Twitter.
O jornalista contou que, na última semana, “a plataforma realizou algumas atualizações e corrigiu diversos problemas de acessibilidade para leitores de tela”, apesar de limitações no uso do recurso para falar em uma sala. “Não é o ideal, mas é um começo.”
“O fato de o Clubhouse ter problemas de acessibilidade não me impede de entender o propósito da plataforma e os méritos do produto. Eu quero sim estar lá, porque minha visão é de que as pessoas com deficiência precisam ocupar vários espaços. Quero estar na plataforma para fomentar, inclusive, debates sobre acessibilidade. E vou continuar em busca disso”, completou Torniero à BBC News Brasil.
Em nota publicada no fim de janeiro, os fundadores do Clubhouse disseram que trabalham para incluir mais acessibilidade ao aplicativo, após uma nova rodada de financiamento, sem especificar quais melhorias são previstas.
A BBC News Brasil tentou entrar em contato com o Clubhouse, mas a empresa informou que, diante da alta demanda, não tem como atender todos os pedidos da imprensa.
E os surdos numa rede de áudio?
Mas, afinal, como uma uma rede que é baseada em áudio pode ser acessível a pessoas surdas?
Marcelo Sales explica que a pandemia — e a maior dependência dos produtos digitais que veio com ela — acelerou o processo das empresas olharem mais para a acessibilidade.
Ferramentas de videoconferência como o Zoom e o Google Meets, por exemplo, incluíram serviços de acessibilidade, como a possibilidade de incluir legendas automatizadas em tempo real.
Redes sociais como Instagram e Facebook também já incluíram na plataforma, assim como o YouTube, a geração automática de legendas.
“O problema é que a assertividade desses produtos ainda não é 100%. Há alguns erros. Imagina ter uma conversa e a legenda passar alguma informação séria errada que pode afetar a interpretação. Isso é algo que tem que ser feito com parcimônia e precisa ser aperfeiçoado”, ponderou o especialista em acessibilidade digital.
Manualmente, alguns produtores de podcasts disponibilizam uma transcrição de episódios e conversas — algo que não deve ocorrer com o Clubhouse, já que as conversas não ficam salvas após uma sala ser encerrada.
Para Pfeifer, do “Surdos que Ouvem”, toda a discussão iniciada em suas redes sociais não se resume ao Clubhouse, mas o aplicativo se torna um “case que escancara o “capacitismo [discriminação contra pessoas com deficiência] generalizado da sociedade”.
“É a necessidade de se jogar luz na questão da falta de acessibilidade de uma maneira geral. A sociedade pouco se importa com isso. Se as pessoas com deficiência não se posicionarem, levantarem a voz, apontarem o erro, ninguém fará isso”, argumenta Pfeifer.
Também professor de acessibilidade digital em cursos de “experiência de usuário”, Marcelo Sales alerta que poucos profissionais conseguem a formação técnica para trabalhar com o tema, já que muitas instituições de ensino “ignoram” essa disciplina.
As empresas, por sua vez, são formadas por equipes que nem sempre pararam para pensar nas dificuldades enfrentadas por pessoas com deficiência.
Sales vai além e destaca ainda que empresários do mundo digital precisam parar de pensar em acessibilidade como um “complemento” ou como “um favor” feito às pessoas.
“O que custa caro é a falta de planejamento. Do ponto de vista do negócio, precisam perceber os milhões de potenciais consumidores que ficam de fora de seu produto. Não só quem tem deficiência, mas as pessoas ao redor que podem tomar as dores. Precisam enxergar como potencial de negócio”.