A tendência de reduzir a dependência do dólar americano e mudar para meios de pagamento nacionais em acordos internacionais está ganhando força em todo o mundo.
© AFP 2023 / FRED DUFOUR
As sanções dos EUA contra a Rússia e outros países colocaram em risco o domínio do dólar, já que as nações visadas estão buscando alternativas, disse a secretária do Tesouro norte-americano, Janet Yellen, a uma agência de notícias no último domingo (17).
“Existe um risco quando usamos sanções financeiras ligadas ao papel do dólar que, com o tempo, podem minar a hegemonia do dólar”, disse Yellen.
Então, quais países estão prontos para descartar o uso da moeda dos EUA em transações comerciais?
Rússia
Em um novo sinal da pressão da Rússia para abandonar o dólar, o ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, disse em um comunicado na semana passada (14) que a tendência de abandonar o dólar por acordos no comércio internacional é “irreversível”.
Lavrov acrescentou que o processo de “fuga” do dólar de vários países, incluindo a Rússia, já está em vigor e que “certamente se acelerará” no futuro imediato.
Segundo o ministro, os EUA deram um tiro no próprio pé, administrando a economia mundial por meio do papel dominante do dólar. Lavrov acrescentou que as sanções impostas por Washington a Moscou por causa de sua operação militar especial na Ucrânia indicaram a necessidade de outros países reduzirem sua dependência do Ocidente.
Isso ecoou comentários anteriores do presidente Vladimir Putin sobre o “processo inevitável de desdolarização”, que ele disse estar ocorrendo atualmente na Rússia e exige a reestruturação da economia nacional o mais rápido possível.
O Ministério das Finanças da Rússia, por sua vez, chamou repetidamente o dólar de “tóxico”, enquanto o chefe do banco VTB da Rússia, Andrei Kostin, descreveu a moeda americana como a arma mais poderosa de Washington, permitindo-lhe “dominar e assustar outros países”. A Rússia não tem outra escolha a não ser “seguir o caminho da desdolarização”, segundo ele.
Brasil e China
Separadamente, na semana passada, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva exortou os países do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) a encontrar uma alternativa para substituir o dólar no comércio exterior.
“Por que uma instituição como o Banco do BRICS não pode ter uma moeda para financiar as relações comerciais entre o Brasil e a China, entre o Brasil e todos os outros países do BRICS?”, indagou Lula durante uma visita ao Novo Banco de Desenvolvimento, com sede em Xangai.
Ao mesmo tempo, ele admitiu que abandonar o dólar é “difícil porque não estamos acostumados [à ideia]. Todo mundo depende de apenas uma moeda”.
Lula falou depois que o Brasil fechou um acordo com a China para negociar em suas próprias moedas, em uma tentativa de abandonar o dólar como intermediário. A Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos disse que o acordo vai ajudar a “reduzir custos e promover um comércio bilateral ainda maior e facilitar investimentos”.
A mídia ocidental, por sua vez, noticiou na época que o acordo deveria “permitir que a China, a principal rival da hegemonia econômica dos EUA, e o Brasil, a maior economia da América Latina, conduzissem suas maciças transações comerciais e financeiras diretamente, trocando yuan por reais e vice-versa ao invés de passar pelo dólar”.
Um meio de comunicação estatal chinês disse, entretanto, que o maior banco comercial do país, o Banco Industrial e Comercial da China (ICBC, na sigla em inglês), processou a primeira liquidação transfronteiriça de yuans no Brasil em sua filial local, “marcando outro passo significativo na globalização do yuan”.
A transação se tornou a primeira desse tipo desde que o banco central da China autorizou o ICBC como um banco de compensação de yuans no Brasil em fevereiro.
Especialistas chineses foram citados pelo veículo dizendo que “espera-se que os acordos em yuans impulsionem a recuperação econômica e comercial regional na era pós-COVID-19 e ajudem as empresas a encontrar uma alternativa mais confiável ao dólar americano, à medida que buscam um comércio transfronteiriço mais seguro e acordos de investimento”.
O pesquisador assistente do Departamento de Estudos Latino-Americanos e Caribenhos do Instituto de Estudos Internacionais da China, Zhang Jieyu, disse à agência que o acordo do yuan com o Brasil “envia uma mensagem clara da crescente aceitação e influência da moeda chinesa globalmente, que servirá como um exemplo a ser seguido por mais países”.
A agência informou que “enquanto o dólar americano ainda domina as reservas cambiais do Brasil, o papel do yuan, como uma moeda de reserva internacional em ascensão, tem sido destacado ultimamente”.
Um recente relatório de pesquisa do Banco Central do Brasil mostrou que, no final de 2022, a proporção do yuan nas reservas cambiais internacionais do Brasil atingiu 5,37%, superando a proporção do euro em 4,74%, o que significa que o yuan se torna a segunda maior moeda de reserva do país sul-americano.
Índia
Embora a Índia esteja pessimista sobre o comércio de yuan devido às relações tensas do país com a China, a própria ideia de diversificar as moedas de comércio exterior é de grande interesse para Nova Deli.
Relatos da mídia disseram na semana passada que uma série de países estava conversando com o banco central da Índia para discutir a conclusão de transações comerciais mútuas em rúpias indianas.
Os países supostamente incluem os vizinhos imediatos da Índia, como as Maldivas e Mianmar, bem como a Rússia e até o Reino Unido, Alemanha e Nova Zelândia.
Segundo os relatórios, empresas e bancos dos países mencionados planejam agora criar as chamadas “contas vostro” (conta de correspondente estrangeiro) em bancos indianos, o que vai os ajudar a fechar negócios para o fornecimento de produtos indianos no exterior e vice-versa.
No momento, o sistema parece bastante complicado, visto que a abertura de cada uma dessas contas deve ser aprovada pelos reguladores indianos e que os saldos acumulados das contas só podem ser investidos em títulos do governo indiano. Especialistas dizem que, embora o sistema esteja fora de sintonia com os princípios do livre comércio, ele representa um grande avanço. Acredita-se que o esquema já tenha sido testado em transações relacionadas ao comércio russo-indiano e da Índia e do Irã.
Campanha do BRICS para ‘aposentar’ o dólar
Quanto ao BRICS como um todo, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, disse em fevereiro que os Estados-membros do grupo já estão trabalhando ativamente para aumentar os pagamentos em moedas nacionais no comércio mútuo e nas operações financeiras devido à falta de confiabilidade do dólar.
“A participação das moedas nacionais nos acordos entre os países do BRICS já está crescendo rapidamente. Os países do BRICS têm iniciativas que contemplam a necessidade de trabalhar na criação de sua própria moeda. A razão é muito simples: não podemos confiar em mecanismos que estão nas mãos daqueles que podem trapacear a qualquer momento e se recusar a cumprir suas obrigações”, disse Lavrov a repórteres.
O economista e pesquisador russo, Mikhail Khazin, disse à Sputnik que o domínio do dólar pode acabar com o surgimento de várias zonas de moeda alternativa, incluindo as regiões da América Latina, Eurásia, China e Índia.
Khazin argumentou que o processo já está em andamento e que “agora faz sentido criar um sistema de pagamento que combine os sistemas monetários das zonas eurasiana, chinesa, indiana e latino-americana”.
“É preciso criar um sistema de pagamentos independente do dólar”, destacou.
Nações do golfo
Em meados de março, o Chinese Export-Import Bank supostamente fechou o primeiro acordo de cooperação e empréstimo com o Banco Nacional da Arábia Saudita. O objetivo é garantir a liquidação futura das transações entre empresas dos dois países em moedas nacionais.
De acordo com especialistas, Riad começou a considerar a mudança para o comércio de yuans já em março de 2022, e sua cooperação ativa com Pequim neste setor nos últimos meses contribuiu significativamente para o processo.
No final do mês de março, a China assinou o primeiro acordo de energia liquidado em yuan referente a cerca de 65.000 toneladas de gás natural liquefeito (GNL) dos Emirados Árabes Unidos.
A transação foi realizada pela China National Offshore Oil Corporation (CNOOC, na sigla em inglês) e pela francesa TotalEnergies por meio da Bolsa de Petróleo e Gás Natural de Xangai. Representantes da empresa chinesa de petróleo e gás CNOOC disseram que pretendem continuar promovendo a “inovação” no comércio de GNL.
O acordo ocorreu depois que o Banco Central do Iraque anunciou em fevereiro que planejava permitir que o comércio da China fosse liquidado diretamente em yuan pela primeira vez, em um esforço para melhorar o acesso à moeda estrangeira.
O banco central disse que busca compensar a escassez de dólares nos mercados locais, que já havia feito o governo aprovar uma revalorização da moeda.
“É a primeira vez que as importações da China serão financiadas em yuan, já que as importações iraquianas da China foram financiadas apenas em dólares [americanos]”, disse o consultor econômico do governo, Mudhir Salih, a uma agência de notícias do Reino Unido.
As observações seguiram o especialista russo Mikhail Khazin que disse à Sputnik que o processo “inevitável” de desdolarização foi facilitado pelas amplas sanções de Washington contra os principais atores globais, incluindo a Rússia, e o uso do dólar como um mecanismo de “punição”. Ao congelar os ativos do Banco Central da Rússia, separando a nação do sistema de pagamento SWIFT e proibindo as exportações de cédulas bancárias nominais em dólares americanos para o país, Washington enviou um sinal sinistro a outros atores mundiais, concluiu o especialista russo.