A apresentação de Pútin assumiu tons de “grand finale”
Mísseis balísticos intercontinentais de nova geração movidos a energia nuclear, de alcance ilimitado e capazes de contornar todos os sistemas de defesa atualmente existentes; mini-submarinos atómicos de controlo remoto equipados com ogivas nucleares múltiplas; canhões e lançadores de ultraprecisão guiados a laser… Esta, em resumo, a panóplia de novas armas estratégicas apresentadas pelo presidente russo Vladimir Pútin, na passagem sexta-feira, em Moscovo.
Ilustrada com vídeos projetados em tela gigante, misturando imagens reais com montagens de computador tipo “guerra das estrelas”, a apresentação de Pútin assumiu tons de “grand finale” no termo de um discurso em geral morno e pouco estimulante sobre o estado da Federação.
O líder russo justificou o rearmamento do Kremlin como consequência, a prazo, da retirada dos EUA, em 2002, do tratado sobre mísseis anti-balísticos ABM – acordo-chave sobre controlo de armamentos assinado em 1972. Logo depois, a Rússia retirou-se do START II, de 1993, ficando aberto o caminho para o desenvolvimento de novos sistemas de armamentos.
O acordo dos anos 70, espécie de Tordesilhas nuclear, garantia a segurança com base no princípio da destruição mútua assegurada – MAD, na sigla em inglês. Caída essa barreira, a evolução era previsível – cada um dos lados passou a tentar obter armas capazes de vencer os sistemas de defesa do outro, a fim de poder impor a sua vontade por coacção. O que Pútin veio agora dizer – em clara resposta aos novos planos do Pentágono – é que os esforços americanos nesse sentido não deram resultado e que a Rússia está em condições de os contrariar.
Quanto há nisso de verdade e quanto de “bluff” é difícil de precisar. Embora com a sua reeleição deste mês garantida – afastados ou mortos que foram eventuais rivais de peso – Pútin não deixou de aproveitar o momento para se reapresentar como o único líder capaz de enfrentar os perigos com que o país se defronta. Uma nota que encontra sempre eco nos corações dos russos, habituados por formação a uma narrativa que faz da Rússia um país reiteradamente cercado e objeto de possível agressão externa pelo menos desde o século XVIII para cá – primeiro por parte da Suécia de Carlos XII, depois da França de Napoleão e por fim da Alemanha de Hitler…
No século XVI, o czar Teodoro I, filho de Ivan, o Terrível, mandou fabricar um canhão gigante para defender o Kremlin, onde ainda está hoje como atração turística – pesa 400 toneladas e podia teoricamente disparar balas de 800 kgs! Excetuando um primeiro ensaio, nunca chegou a funcionar em combate, mas a sua simples exposição teria tido efeitos dissuasivos pertinentes. Pútin parece querer retomar essa tradição com idêntico objetivo. Só que agora o perigo é bem maior: pode estar em causa a sobrevivência do próprio planeta.
Resta por isso esperar que a apresentação dos novos canhões do czar possa servir como alerta universal para a necessidade de se retomar o diálogo sobre controlo e redução das armas nucleares. Antes que seja demasiado tarde.
Carlos Fino é Jornalista, correspondente da televisão pública portuguesa RTP em Moscou, Bruxelas e Washington. Destacou-se como repórter de guerra na ex-URSS, Afeganistão, Oriente Médio e Iraque. Foi adido de imprensa da Emb. de Portugal em Brasília, onde reside