A criança, que foi abusada por um parente, e sua mãe haviam iniciado o procedimento, conforme permite a lei boliviana, mas mudaram de ideia após religiosos católicos e grupos anti-aborto intervirem.
Choque, tristeza, raiva e indignação.
Esses são alguns dos sentimentos que surgiram em setores da sociedade boliviana em reação ao caso de uma menina de 11 anos que engravidou devido aos contínuos abusos sexuais cometidos por um homem de 60 anos.
“Meninas, não mães” e “Salve as duas vidas” são alguns dos slogans que vêm sendo usados nos últimos dias, tanto nas redes sociais quanto em manifestações nas ruas, por aqueles que defendem que a menina pode interromper a gravidez amparada pela lei e por aqueles que acreditam que a gravidez fruto de estupro deve seguir seu curso.
O caso, que aconteceu no município de Yapacaní, na região leste do país, teve grande repercussão em toda a Bolívia na última semana.
Estuprada por meses
Por mais de nove meses, a menina foi vítima de abuso sexual praticado pelo pai do atual companheiro de sua mãe.
A gravidez foi descoberta depois que a menina “sentiu movimentos estranhos” em sua barriga e contou a seus parentes. Após um primeiro exame médico, foi descoberto que ela estava grávida de 21 semanas.
A tia da menina apresentou queixa contra o suposto agressor, que aguarda seu processo judicial em um presídio de segurança máxima.
Ao mesmo tempo, foi apresentado um pedido de interrupção legal da gravidez (ILE, na sigla em espanhol) para a menina abusada.
Na Bolívia, desde 2014, uma mulher pode ter acesso ao aborto legal e seguro nos casos em que a gravidez é fruto de estupro, incesto, estupro de menor de idade, ou se a gravidez coloca em risco a vida ou saúde da mãe.
É necessário fazer a denúncia de estupro e ter o consentimento da vítima, eliminando a exigência de autorização judicial que consta do Código Penal Boliviano para a realização de um aborto sem que haja punição.
A interrupção legal da gravidez da menina começou no dia 22 de outubro. Segundo a Casa da Mulher, instituição que apoiou a Defensoria da Criança de Yapacaní no início do caso, a menina recebeu um primeiro medicamento para interromper a gravidez.
No entanto, após a cobertura da mídia sobre o caso (bastante criticada como “irresponsável”, já que o direito à privacidade da menor de idade não foi respeitado), a Igreja Católica e grupos chamados “pró-vida” pressionaram a menina e sua mãe a mudar de ideia e desistir de continuar com a interrupção da gravidez, segundo disse à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) a defensora pública da Bolívia Nadia Cruz.
Em 23 de outubro, com uma carta manuscrita assinada por ela, a menina desistiu de prosseguir com a interrupção da gravidez.
Ela teve alta do hospital na última terça-feira (26/10) e foi, junto com a mãe, a um centro de acolhimento administrado pela Igreja Católica, instituição que se compromete a cuidar de menores de idade e de seu filho ainda não nascido.
Nadia Cruz considera que a mãe não deve ter voz na tomada de decisão neste caso, uma vez que o abuso sexual ocorreu enquanto a menina se encontrava em “absoluta solidão e indefesa”.
“De acordo com os relatórios que acessamos, a forma como foi pressionada e encurralada por membros da Igreja, que se identificaram como do Arcebispado, gerou dúvidas e medo na menor para que recuasse em sua decisão de interromper legalmente a gravidez “, diz a defensora.
“Ela decidiu fazer uma ILE levando em consideração seu projeto de vida. Ela mesma disse ‘eu quero estudar, eu quero uma vida para mim’. As outras duas formas de intervenção [da mãe e da Igreja] fazem parte da grave violação de direitos de que a menor foi vítima “, afirma Cruz.
‘Até o limite da legislação’
Segundo dados divulgados pela diretora da Casa da Mulher, Ana Paola García, em 2020 ocorreram 39.999 gestações de menores de 18 anos na Bolívia, o que significa que em média 104 meninas engravidam por dia no país, das quais 6 tinham menos de 13 anos.
A assessoria jurídica da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano de Santa Cruz, a cargo da Defensoria da Criança e do Adolescente do mesmo município, diz à BBC Mundo que se trata de um caso que está “no limite da legislação”.
Embora a decisão constitucional de 2014 não especifique um prazo para a interrupção da gravidez, o Ministério da Saúde da Bolívia regulamenta esse aspecto com base no que diz a Organização Mundial da Saúde (OMS) e estabelece o limite de viabilidade do feto em 22 semanas para interrupção da gravidez.
Nesse caso, dizem as mesmas fontes, a menina está no limite do tempo previsto e apontam que, quando o médico faz o diagnóstico do tempo da gravidez, “sempre há uma margem de erro”.
Ressaltam, ainda, que embora o caso da menina atenda a três dos fundamentos tipificados na decisão constitucional, o processo de interrupção da gravidez deveria ser realizado em até 24 horas. Além disso, questionam a decisão de uma menina de 11 anos, visto que, nessa idade, na instância judicial, não há capacidade para firmar contrato perante qualquer instituição.
Diante desse cenário, eles veem uma “contradição jurídica” na capacidade conferida pela sentença de 2014: “Você está dando o poder de tomar a decisão de matar ou não matar a um ser de apenas 11 anos”.
“Ninguém mais pode decidir sobre ela, nem o Estado, nem um hospital, nem uma comissão de médicos, nem a Igreja Católica. Questionamos essa capacidade legal porque é uma menina, mas a doutrina diz que ela tem o direito de decidir, e ela decidiu continuar com a gravidez”, acrescenta a assessoria jurídica do município de Santa Cruz.
Gravidez de risco
A posição da Igreja boliviana tem sido, desde que o caso foi divulgado, a de “salvar, cuidar e sustentar com amor as duas vidas”. Em nota, fontes eclesiásticas afirmaram que “já é uma criatura bem formada e por isso goza, sem dúvida, da proteção que emana das leis e da Constituição Política do Estado”.
“Um crime não é resolvido por outro crime. O aborto não cura o estupro, nem dá paz de espírito às consciências. Pelo contrário, deixa feridas psicológicas mais graves e por muito tempo”, acrescentaram.
Iblin Moscoso, obstetra e ginecologista da clínica CIES de Santa Cruz, garante em conversa com a BBC Mundo que, do ponto de vista médico, esta menina tem “uma gravidez de muito risco” por todas as complicações que pode ter.
A menor iniciou o processo de interrupção da gravidez tomando uma pílula. No entanto, o especialista afirma que várias doses são necessárias para atingir o efeito de expulsão do feto e, em seguida, realizar uma aspiração manual intrauterina.
“Com apenas uma dose, não temos resposta. Agora, se isso pode ter consequências mais tarde ou algum efeito retardado, vai depender da resposta do corpo dela”, diz a médica.
A médica, que trabalha em uma clínica que visa contribuir para o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos, afirma que, durante a gravidez de uma menina de apenas 11 ano,s podem ocorrer complicações como a pré-eclâmpsia (caracterizada por hipertensão e sinais de lesões para outro sistema de órgãos, na maioria das vezes fígado e rins), parto prematuro, desnutrição ou risco de hemorragia durante o parto ou pós-parto, “porque seu corpo não está preparado”.
“Se falamos da parte psicológica, é muito mais complicado pelas implicações que tem. A menina não vai estar pronta para ser mãe. Ela pode não ser capaz de aceitar esse bebê depois que ele nascer, não só por ter engravidado em uma idade em que ainda não está pronta para ser mãe, mas também por ser fruto de estupro”, acrescenta a especialista.
Moscoso considera que o direito à interrupção legal da gravidez na Bolívia continua a enfrentar um obstáculo em relação ao temor de alguns médicos de aplicar a sentença constitucional devido à pressão social que sentem. “Enquanto os casos não forem tratados com a confidencialidade necessária, tanto para o paciente quanto para a equipe que participará de uma intervenção, os médicos não poderão atuar sem medo de serem julgados pela sociedade”, acrescenta Moscoso.
Relatório elaborado pela Defensoria com apoio do Ipas Bolívia revela que apenas 8% dos 277 profissionais de saúde de 44 centros consultados em todo o país sabiam em quais casos procede a interrupção legal da gravidez, o que resulta em violações dos direitos das mulheres, meninas e adolescentes.
O documento, publicado em setembro do ano passado, aponta que usuárias que vão a uma unidade de saúde em estado de gravidez em decorrência de estupro e solicitam a interrupção legal da gravidez são submetidas a questionamentos pelo médico da equipe sobre sua decisão.
“Identificou-se que, na maioria dos casos, os profissionais de saúde tentam persuadi-las a continuar com uma gravidez indesejada ou lhes é negado o direito de interrompê-la, situações que geram angústia, dor, sofrimento e revitimização nas mulheres, meninas ou adolescentes vítimas de estupro”, diz o relatório.