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segunda-feira, 25/11/24
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Como a pandemia testou as instituições brasileiras

Inércia do governo federal forçou outros pilares da democracia a agirem – e também os colocou à prova como nunca antes. Em livro, especialistas refletem sobre esse legado ainda em construção.

A postura negacionista e a inação do governo federal no Brasil em relação à covid-19 gerou consequências ímpares na organização do Estado, na burocracia, nas instituições, nas políticas públicas e na comunicação. O Supremo Tribunal Federal (STF) agiu diante da omissão do governo central e mudou jurisprudências sobre o federalismo. Agentes de saúde, médicos e enfermeiros foram forçados a fazer escolhas de maneira autônoma diante de protocolos sanitários distintos e embates entre governadores, prefeitos e um presidente que ignora a ciência. Servidores públicos estão exaustos, com a saúde mental comprometida, e um ano sem férias. A desigualdade social foi escancarada, a disfuncionalidade das instituições reconhecida.

Um ano após o início da pandemia, o Brasil tem o maior número de óbitos por habitantes do mundo, fase aguda de transmissão e risco iminente de colapso da saúde generalizado em todos os estados. Lições desta realidade foram abordadas no livro Legado de uma pandemia: 26 vozes conversam sobre os aprendizados para política, com apoio do Insper (Instituto de Pesquisa e Ensino e da Fundação Brava. Organizado pela economista Laura Muller Machado, professora do Insper, a obra é uma reflexão de pesquisadores do instituto, de Stanford, Harvard e Fundação Getúlio Vargas.

“Havia uma angústia forte e a vontade acadêmica de contribuir”, diz Laura Muller à DW Brasil. Segundo ela, o livro, cuja versão digital pode ser acessada gratuitamente no formato e-book, tem como público alvo gestores públicos e políticos.

“Espero que inspire a todos que estão fazendo políticas publicas, nos três Poderes, para que elas funcionem e sejam eficientes”, afirma. Muller assina dois capítulos, com o economista Ricardo Paes de Barros, idealizador do Bolsa Família, que refletem sobre os aprendizados com as desigualdades social e intergeracional (investimento público infinitamente superior em idosos do que em crianças).

“A pandemia não acabou, o mundo não resolveu [os desafios] e todos nós estamos sentindo muito por esse número elevado de mortes. Mas tudo o que está escrito ali já serve sim de legado”, justifica, ao ser questionada sobre o nome da obra.

Segundo a professora, há aprendizados que se tornaram sólidos, como a obviedade de se ter, no Brasil, um cadastro social ampliado, “com todas as pessoas, nome, endereço, telefone, o que fazem e o que precisam, é difícil que isso não seja um legado”. Sessenta e seis milhões de brasileiros se cadastraram para receber o benefício pago a famílias carentes e profissionais informais que ficaram sem renda na pandemia. “É preciso um cadastro para dar luz aos invisíveis.”

Os efeitos na burocracia brasileira

Especialistas em gestão pública, os professores Marcelo Marchesini, do Insper, e Gabriela Lotta, da FGV, analisam os efeitos da covid-19 na burocracia brasileira. “A pandemia exacerba problemas estruturais do Brasil que já existiam e estavam escondidos. Neste sentido, não dá para esperar que a pandemia transforme esses processos estruturais. Mas é um legado que  a pandemia conseguiu nos mostrar. Exemplo: nossos profissionais da linha de frente são muito abandonados. Piorou a situação, mas não foi a pandemia que construiu isso”, argumenta Lotta, da FGV, em entrevista à DW.

Ao discutirem os efeitos de uma “gestão pública vigilante”, Marchesini e Lotta mostram exemplos de como os servidores públicos tomaram decisões solitárias. “A burocracia assume protagonismo diante da disfuncionalidade dos agentes políticos, da falta de capacidade de respostas, da perda de legitimidade do governo no momento em que respostas de políticas públicas se faziam tão necessárias. É um caráter de burocracia vigilante, muitas vezes exercendo a discricionariedade para fazer escolhas que limitam ou contradizem as escolhas formais e oficiais dos agentes políticos”, explica Marchesini.

E como saber se a decisão discricionária do servidor é a melhor para a sociedade? De acordo com Gabriela Lotta, é preciso ter os resultados como métrica. Sempre que há esse conflito, “do governante querendo governar, e o burocrata querendo ser autônomo, defendendo as suas próprias ideias”, instituições funcionais encontram uma solução, “em democracias mais fortes e estáveis”. “Mas quando você tem um governante que não governa com normalidade democrática e com instituições que não funcionam bem, se perde esse equilíbrio. Ou a burocracia se autonomiza excessivamente e perde sua capacidade de controle, ou você tem um governante que muda as instituições a seu bel prazer e não é responsivo, e a burocracia não consegue impor a legalidade”, explica a pesquisadora.

Os dois professores sugerem, ainda, que os gestores públicos olhem para a saúde mental dos profissionais que estão na linha de frente de combate à covid-19. Uma das recomendações é que profissionais do setor de saúde mental sejam deslocados para dar suporte terapêutico a médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem.

O papel do Supremo

Outro efeito analisado no livro aborda o papel do Supremo. No capítulo “Covid-19, federalismo e descentralização no STF: reorientação ou ajuste pontual?”, os professores de direito do Insper Natalia Pires de Vasconcelos e Diego Werneck Arguelhes pontuam que “a covid-19 provocou uma ampliação do espaço de atuação de estados e municípios”, pois o Supremo, ao julgar conflitos federativos, “não seguiu a tendência de centralização e uniformização, característica de sua jurisprudência”.

Sem planejamento nacional e de engajamento do governo federal no combate à pandemia, o STF agiu para que decisões de governadores e prefeitos pudessem proteger a população. “O que a pandemia ensina para a gente é que o contexto importa. Embora a Constituição dê esse poder forte nas mãos da União, se trata de um poder-dever. A União pode agir, mas ela tem que agir. O contexto da pandemia foi isso: se você não age, e se você não deixa agir, aí o Supremo vai mexer nessas válvulas e garantir mais espaço para a atuação dos Estados e municípios”, afirma Werneck à DW.

Segundo ele, se Jair Bolsonaro tivesse adotado medidas restritivas, seguindo orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e respeitando protocolos sanitários internacionais, “talvez o STF tivesse reconhecido mais espaço para a União”. O Supremo entendeu, na visão de Werneck, que o presidente do Brasil se coloca numa posição radical, “fora da divergência razoável”. “A linguagem da ciência, da expertise técnica, vem com muitas força nessas decisões dos ministros do STF.”

O Supremo jamais impediu o governo federal de agir, enfatiza ele, mas Bolsonaro se apropria desta narrativa desfavorável à corte. E, nesta guerra de narrativas, o presidente tem muito mais poder do que os ministros do STF. “O presidente diz isso o tempo inteiro, que o Supremo o impediu de agir, mas nós mostramos exatamente o contrário: o Supremo empoderou outros atores por falta de medidas compatíveis com o que o tribunal considerava o mínimo necessário contra a doença”, afirma Werneck.

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