Em entrevista à Sputnik Brasil, Laura Waisbich, analista internacional e pesquisadora da Universidade de Oxford, avaliou que o Reino Unido “enfrenta uma crise dramática” nos âmbitos social e econômico, mas o conflito na Ucrânia é apenas a ponta do iceberg dessa situação.
Com a saída de Boris Johnson, o novo governo britânico, da premiê Liz Truss, começa com graves problemas internos, como o descontrole da inflação, que deve superar 18% até o fim deste ano, segundo relatório do banco Citigroup. O índice representa o processo inflacionário mais grave entre as maiores economias do Ocidente.
Embora muitos apontem o dedo para a Rússia e para os cortes na venda de gás para a Europa, consequência do conflito na Ucrânia e das sanções lançadas sobre a economia russa, a crise no Reino Unido envolve uma combinação de fatores que inclui mais elementos que a dependência europeia das exportações da Gazprom, estatal de gás russa.
A avaliação de Laura Waisbich, analista internacional e pesquisadora da Universidade de Oxford, é que “de fato o novo governo assume com uma situação doméstica delicada, em um cenário de crise econômica, política e social”. Ela aponta que além da questão dos alimentos e da energia, duramente impactados pela inflação e certamente mais comentados pela imprensa, a situação no sistema laboral (de criação de empregos) e na saúde também é crítica.
Segundo ela, “a questão da energia é muito aguda, porque ela é de fato dramática e criou uma instabilidade no governo”. A analista internacional, que mora em Londres, aponta que “o salto de preços [nas contas de energia] foi muito alto e pesará no endividamento das famílias”. Isso, entretanto, é apenas uma parte dos problemas dos britânicos, que ainda precisam resolver o colapso em seu sistema de saúde após a pandemia de COVID-19 e constantes greves.
A situação no Reino Unido desencadeou grande frustração entre seus cidadãos, dando origem a um número cada vez maior de greves e a iniciativas de boicote às contas de luz e gás. A onda de greves de trabalhadores cujo salário não dura até o fim do mês devido à alta dos preços foi apelidada de “verão do descontentamento” pela imprensa britânica, uma alusão a protestos registrados no fim da década de 1970.
Nas redes sociais, a campanha Don’t Pay (Não pague, em tradução livre) é um sucesso. Até que o governo adote medidas eficazes, a campanha, lançada em junho, convoca os britânicos a boicotar o pagamento das contas de eletricidade a partir de 1º de outubro. Até agora, mais de 110 mil pessoas aderiram à iniciativa.
No âmbito laboral, os sindicatos estão frustrados. Como as contas não fecham no fim do mês, milhares de trabalhadores de diversos setores cruzaram os braços e entraram em greve. A central sindical britânica (Trades Union Congress, TUC) pediu ao governo que tome medidas para aumentar o salário mínimo para 15 libras por hora “o mais rápido possível”.
Citando apenas alguns exemplos, o histórico setor ferroviário entrou em greve diversas vezes nas últimas semanas, ao lado dos estivadores do porto inglês de Felixstowe; do Judiciário; do serviço de correio britânico, Royal Mail; e dos segmentos de telecomunicações, de professores e de enfermagem. Da mesma forma, o serviço de coleta de lixo na Escócia paralisou suas atividades e deixou suas caçambas transbordando de sacos de lixo.
Como apontou Laura Waisbich, Liz Truss ainda não apresentou um plano concreto para resolver os problemas, embora tenha dito que, inspirada em Margaret Thatcher, será dura com os grevistas. A analista de Oxford apontou que, dentro do debate público, a premiê “tentou regular o preço máximo da energia (trazer um limite) e planeja um tipo de política pública individualizado às diferentes famílias no pagamento de suas contas”.
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Liz Truss, então secretária de Relações Exteriores do Reino Unido, discursa durante encontro do G7 em Liverpool, na Inglaterra, em 12 de dezembro de 2021
© AP Photo / Olivier Douliery
Questionada sobre os planos para resolver a crise energética no país, a especialista explicou que “fora do governo existe muito debate, sobretudo em torno de formas de fazer a transição energética, em especial para indústrias mais verdes”. Entretanto, por parte do governo, não há nada concreto nesse sentido. “O Reino Unido está andando para trás na questão energética, pois não há discussão de longo prazo sobre câmbio climático”, comentou.
Para ela, o conflito na Ucrânia teve um peso considerável no agravamento da situação socioeconômica britânica. Porém o desgaste dos políticos do Partido Conservador, em especial nas imagens de Boris Johnson e Liz Truss, não está diretamente associado ao conflito.
O que pesa na avaliação dos conservadores, afirma, é uma série de erros históricos, que começa no processo do Brexit, passa pelo desastre social da COVID-19 e pelo “Partygate” (o escândalo das festas de Boris Johnson, então premiê, durante a pandemia) e finalmente chega à Ucrânia e às sanções contra a economia russa, cujo impacto também foi sentido pelos países que propuseram as restrições. Como apontou Laura Waisbich, “o conflito ucraniano foi a gota d’água”, porque a crise era latente.
Questionada sobre a mudança de premiê e sobre o apoio à Ucrânia, a especialista comentou que “não haverá mudança formal, pois ela [Truss] reforça o apoio e promete continuidade, seja na entrega de armas, seja no treinamento”. Entretanto o foco do governo que está começando “deve ser o lado doméstico”. Para ela, “embora não seja possível se descolar das questões internacionais, o foco, sem dúvida, será doméstico”, pois está cada vez mais difícil para o Reino Unido usar a crise na Ucrânia como cortina de fumaça para seus problemas internos.