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quarta-feira, 27/11/24
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Flordelis: milagre do storytelling

O fato é que, com os detalhes do assassinato do pastor Anderson do Carmo, agora todos querem distância daquela com quem antes corriam para tirar foto

Flordelis: deputada foi apontada pela polícia como mandante da morte do marido, o pastor Anderson do Carmo (Agência Câmara/Divulgação)

Não sou capaz de sequer compreender todos os meandros e relacionamentos envolvidos na história da Deputada Flordelis. A cada dia um novo detalhe aparece: relacionamento com filho adotivo, casa de swing, envenenamento, assassino de aluguel, oferta de filhas para satisfazer pastores visitantes. Flordelis foi, nesta ordem, mãe, sogra e esposa de Anderson. Alguns se escandalizam com o fato do crime estar sendo tratado como algo quase cômico, mas me parece quase inevitável que esse ângulo cômico esteja presente dada a escabrosidade da trama e o contraste gritante quando lembramos que Flordelis era um símbolo de pureza e bondade evangélicas.

Não cabe preconceito religioso aqui. Flordelis não nos deve fazer condenar todo o meio evangélico mais do que João de Deus nos leva a ter horror do espiritismo. Junto às elites culturais, é verdade que existe sim um preconceito contra evangélicos. Ele não deve, contudo, ser exagerado. O líder de movimento social Preto Zezé lançou, no Twitter, uma indagação mais angustiante: e se Flordelis não fosse de igreja, e sim de terreiro? Como teria sido a cobertura da imprensa, a reação popular, a reação da classe política?

O fato é que agora todos querem distância daquela com quem antes corriam para tirar foto. Naturalmente, cada lado do espectro político busca tirar uma casquinha desse caso. Flordelis, evidentemente, é uma política da direita brasileira. No meio evangélico, era uma estrela. Políticos da direita e da bancada da bíblia, até a primeira-dama, todos adoravam aparecer como amigos dela. Mas o outro lado também tem seu trunfo: atores globais – progressistas – se engajaram voluntariamente na produção de um filme sobre sua vida: “Flordelis: Basta uma Palavra para Mudar”. Ficamos no aguardo da sequência.

Penso que é bom sempre duvidar um pouco, manter alguma reserva, de mostras sensacionais de virtude e amor à humanidade. Se a pessoa é uma estrela pop e depende de sua imagem para viver, então, é mais provável ainda que a história real não seja tudo aquilo que ela diz; ou mesmo nada do que ela diz; ou ainda o exato oposto do que ela diz.

Cuidar de um filho já é um trabalhão. Adotar uma criança é uma ação admirável que acarreta ainda mais cuidados e trabalho, posto que traz consigo aspectos delicados e não raro sofridos. O que dizer de adotar 51 filhos além de quatro biológicos? Que uma história tão virtuosa dessas tenha sido aceitada sem o mínimo de desconfiança por tanta gente revela uma sociedade carente de bons exemplos, mas pronta a acreditar no primeira aparência brilhante que apareça pela frente. Fazer direito a própria obrigação, agir com honra, honestidade e comedimento? Isso ninguém está nem aí. Gritar do alto dos telhados atos sobre-humanos de altruísmo e auto-sacrifício? Daí o sucesso é total

Hoje em dia tudo é storytelling. Todos têm uma narrativa de superação, de grandes feitos, uma conversão extraordinária, uma aventura no limiar da vida e da morte. Quem não tem está automaticamente limado; é sem graça, nada tem a dizer.

Por trás de toda narrativa inspiradora há uma dose de mentira. Não raro a história verdadeira é até mais interessante (neste caso, infinitamente mais), embora menos edificante e propícia à nossa vaidade. Se reconhecermos isso podemos ter uma relação mais saudável com a imperfeição de nossas próprias vidas, e ser menos crédulos com o próximo bastião de virtudes esplêndidas que cruzar nosso caminho.

 

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