Garoto de 13 anos, que estava escondido sob a cama de estuprador preso, está em abrigo, mas deve voltar para casa até o fim do ano
Na entrada de Alto Longá, uma cidadezinha a 93 quilômetros de Teresina, no Piauí, a placa de boas-vindas é também uma pista sobre os 14 mil habitantes: “A cidade dos humildes”. Até ser mandado para um abrigo, era lá onde morava o garoto de 13 anos achado em uma prisão, às 2 horas, escondido embaixo da cama de um homem que cumpria pena por estupro de vulnerável. Um mês após o caso, o lugar viu a rotina virar de ponta-cabeça, mas agora se prepara para ter a criança de volta, no fim do ano.
Marcada pela paisagem campestre – com gente que se trata por “comadre” e “compadre” e, não raro, resolve conflito na base do facão -, Alto Longá é a cidade de Sebastiana da Silva Rodrigues, de 46 anos, e Gilmar Francisco Gomes, de 49, pais do garoto. Hoje, ele está preso por abandono de incapaz, constrangimento ilegal, e mais três crimes. Ela, indiciada pelos mesmos delitos, está em liberdade, mas sem a companhia de quatro dos seis filhos, afastados pela Justiça. Se condenados por todos os artigos, a Polícia Civil – que não conseguiu provar que houve estupro ou esquema de pedofilia – estima 8 anos de prisão.
Lavradores, os dois casaram no início dos anos 1990 e foram morar em uma casa de pau a pique. Primeiramente, vieram três garotos: o mais novo morreu quando “Bastiana”, como é chamada, esperava uma menina, hoje com 15. Depois, mais três rapazes, em escadinha: 13, 11 e 9 anos. Após o caso, os quatro menores foram levados para um abrigo, que é coordenado por uma escola com uma das avaliações mais altas do Enem. Os mesmos professores da rede privada dão aula para as outras crianças. “Antes, Bastiana parecia uma galinha, com os pintinhos embaixo da asa”, contou a comadre Rosalina Passos, de 70 anos, a tia Rosa. “Agora, só faz chorar.”
No dia 27 de outubro, o Tribunal de Justiça do Piauí realizou uma audiência para discutir a situação das crianças. Os meninos chegaram a preparar as mochilas, pensando que iam voltar para casa. “Só quem não fez isso foi a maiorzinha, que já estava sabendo”, contou uma pessoa próxima da família. Foi a primeira vez, após o caso, que viram a mãe. “Eles pulavam no nosso braço, sem largar. Rolaram no chão de alegria.”
Com o processo sob segredo de Justiça, a juíza Maria Luíza de Moura Mello, da 1ª Vara da Infância e Juventude, limitou-se a dizer que Sebastiana é uma pessoa “frágil, indefesa e pobre”. “Olha, eu falo e me arrepio”, afirmou, levantando a manga da camisa. Segundo presentes, a guarda só não foi devolvida porque ela está vivendo de favor.
Na audiência, ficou decidido que as crianças devem ficar, provisoriamente, sob tutela da chamada “família extensa”, grupo de pessoas que possuem vínculos com os jovens. Mas só vão voltar para Alto Longá quando acabar o ano letivo. Motivo: os meninos estão bem na escola, depois de vários dias sem conseguir nem falar, e uma nova mudança poderia ser pior, avaliaram. À psicóloga, o menino de 13 anos até comentou: “Sabia que eu tô famoso?”.
Analfabeta, assim como 36% dos habitantes de Alto Longá, Bastiana assinou a ata da audiência com o dedão. “Ela é uma pessoa ‘natural’, não sabe? É como se fosse uma selvagem. Não conhece nada, não sabe nem quanto vale dinheiro; o marido é quem manda em tudo. Para ela, do jeito que tá, tá bom”, resumiu um amigo.
Em uma casa sem forro, Marcos Luciano Gomes, de 30 anos, amigo e vizinho da família, além de conselheiro tutelar, se prepara para receber a mais velha e o caçula, como decidiu a Justiça. “Estamos esperando para abraçar essas crianças e fazer o acolhimento”, disse Gomes, que já deixou o quarto pronto para os garotos, com uma rede e uma cama. “Todos não veem a hora que os meninos vão voltar para cá.” Na prática, vão ficar do lado da mãe.
A Justiça também determinou o afastamento de Gilmar, caso receba liberdade, por causa do histórico de violência doméstica e alcoolismo. “Ela diz que nunca teve agressão, mas a gente vê marca no braço, olho roxo, não sabe?”, contou um vizinho. A tia Rosa também comentou o assunto: “A bichinha morre de medo que ele apareça por aqui. Está apavorada!”.
Em 2012, Gilmar, que também é pescador, ia para a Barragem dos Corredores, em Campo Maior. Um dia, passou na casa de uma comadre para chamar a filha dela, de 12 anos. O Ministério Público diz que ele tentou convencer a menina a fazer “carícias íntimas” e até ofereceu 10 reais. A vítima disse não. À força, a carregou para um matagal e foi condenado a uma pena de 10 anos. Com depressão, a jovem morreu aos 15, no ano passado.
Na época, Bastiana decidiu apoiar o marido. Depois de ter sido afastada dos filhos, isso mudou, diz a tia Rosa. “Parece que deu um estalo nela: não quer mais nada com ele.”
Com a repercussão, moradores de Alto Longá passaram a evitar o assunto. Quando veem estranhos, fazem perguntas. Muitos se empenham para manter em segredo a maloca de dois cômodos, sem banheiro ou energia, onde Sebastiana teve abrigo. “Tô proibida de falar”, disse a mãe, ao ser abordada. Lá de dentro, surgiu uma tia, esbaforida, fazendo força para levantar uma tábua com as mãos: “Vai embora, urubu! Ô, venha para cá que rebolo essa ripa na sua cabeça!”. É com essa tia que vão ficar as outras duas crianças.
Sistema paralelo
Naquela madrugada, o agente penitenciário levantou o colchão do preso e, para espanto geral, nada de droga ou arma. “Meu Deus, olha só o que eu encontrei!”, gritou, ao flagrar, durante a revista, o garoto escondido na Colônia Agrícola Major César Oliveira. Voltada ao regime semiaberto, a unidade fica à beira da BR-343, em Altos, mas na divisa com Teresina.
Às pressas, outro agente tirou o celular e – click! -, fez o retrato que ganhou repercussão internacional, expondo a precariedade do sistema penitenciário brasileiro. Na foto, dava para ver: o garoto, assustado, de barriga de fora e short jeans. O que não dava para ver: um garoto da roça, analfabeto, que ajudava os pais na lavoura (e, suspeita-se, em uma carvoaria rural), e tinha pela primeira vez, em meio a carcereiros, a atenção de tantos olhos.
O agente conta que puxou o moleque de canto e arriscou um papo de futebol para acalmá-lo. Só depois, diz, foram “assuntar”. “Como você veio parar aqui?” Mais calmo, o menino disse que foi visitar o homem à tarde, com os pais e três irmãos. Na hora de ir embora, Gilmar deu ordem para ele dormir ali. Também disse que não era a primeira vez – a diferença é que, antes, a família inteira tinha ficado. Ficou lá assistindo à história de Jesus Cristo no DVD. Em nenhum momento, o preso pediu para tocá-lo, nem fez nada.
Como foi noticiado, o homem era José Ribamar Pereira Lima, de 51 anos, preso por estupros (no plural), entre eles o de um garoto de 4 anos. O pai da criança, apesar de estar em liberdade havia cinco meses, também já tinha cumprido pena pelo crime, mas continuava trabalhando na Major César, onde os dois se conheceram. Compadres, Gilmar até o convidou para participar do batizado dos filhos este ano (o preso teve de viajar mais de 40 quilômetros para comparecer).
Onde acharam o garoto não é exatamente uma cela, mas a casa que antes abrigava o diretor da unidade, perto da horta. Ela é separada da carceragem comum por um caminho de terra. Na área, as cercas são de arame, fáceis de passar, e não há controle de acesso. A reportagem chegou ao local, sem passar por fiscalização. Saiu por ordem dos presos.
O sindicato dos agentes penitenciários do Piauí denunciou um “sistema paralelo” na Major César. “Eram 24 presos com privilégios, os chamados de confiança”, disse José Roberto Pereira, presidente da entidade. Entre eles, haveria um ex-político, advogados, Ribamar e mais seis acusados de estupro. Na semana passada, uma Hilux (de um preso, segundo funcionários) esteve lá. Em nota, a Secretaria de Justiça do Piauí nega um “sistema paralelo”. “Todos os detentos são submetidos aos mesmos procedimentos carcerários.” Sobre o carro de luxo, diz que está “sob investigação”.
Em meio à polêmica, o governo do Piauí iniciou uma reforma na antiga casa do diretor, transferindo presos e arrancando o telhado. Uma sindicância foi instaurada para apurar se houve omissão no controle de acesso, além do responsável por divulgar a imagem da criança. Doze agentes penitenciários foram afastados, conforme virou notícia.
Já o menino, torcedor do Flamengo, embora não saiba ler, estava matriculado no 5º ano da Francisco Pereira de Magalhães, escola municipal de Alto Longá. A diretora até se queixou que o aluno andava faltando muito, antes do ocorrido, para ajudar na lavoura. Ninguém deu muita importância às queixas.