Você não está enganado(a), muito menos é impressão sua ao ver o noticiário. Casos relacionados a abuso sexual nos trens, metrôs e ônibus da cidade de São Paulo realmente tiveram um aumento em 2017 em relação ao mesmo período do ano passado. Entre os meses de janeiro até o dia 25 de setembro deste ano foram registrados 388 casos ante 240 no mesmo período de 2016.
O número representa uma alta expressiva de 61%. Nos casos citados pela Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP-SP) estão importunação ofensiva ao pudor, ato obsceno, estupro, assédio sexual, violação sexual mediante fraude e corrupção de menores.
Em nota, a SSP-SP afirma que o Estado é “pioneiro no aprimoramento de políticas de segurança no combate à violência sexual e de gênero e adota medidas para o combate a esse tipo de crime”. A entidade afirma, também, que existem 133 Delegacias de Defesa da Mulher (DDM), sendo nove delas na capital paulista.
A promotora do Ministério Público, Fabíola Sucasas – que lançou, junto à jurista Tatiane Moreira Lima, a campanha “Juntos Podemos Parar o Abuso Sexual nos Transportes” -, afirma que é preciso “repensar e reavaliar, em termos de sociedade, qual valor se dá à dignidade da mulher”.
“Nós precisamos realmente repensar nossa legislação. Obviamente que agora, no ano de 2017, vivendo no Brasil, existe uma mulher muito diferente daquela que existia em 1940. A todo momento, quando falamos em violência de gênero, é como se a sociedade nos impusesse o padrão da ‘bela, recatada e do lar’”, diz. “E que se não seguir o padrão, ela merece ser violada, merece o assédio, o estupro, as cantadas de rua, o assédio sexual no espaço do trabalho. Ela é vista como alguém que pede para ser violada quando deve ou quando usa roupa curta, ou que não merece respeito porque se envolve com mais de um homem, ou eventualmente porque perdeu a virgindade merece ser espancada pelo próprio pai.”
Falta punição?
Um dos casos que gerou repercussão nacional no que trata da punição aos agressores foi com Cíntia Souza. Ela foi abusada sexualmente dentro de um ônibus em São Paulo. Um homem ejaculou em seu braço. A decisão da Justiça? Para ela, nula. O juiz José Eugenio do Amaral Souza Neto, do Tribunal de Justiça de São Paulo, do Foro Criminal da Barra Funda decidir por não indiciar e soltar o agressor Diego Ferreira de Novais, por não ter observado crime de estupro. Segundo o magistrado, não houve “constrangimento e tampouco violência” do acusado.
“O crime de estupro tem como núcleo típico constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Na espécie, entendo que não houve o constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco do ônibus cheio, em cima de uma passageira, que ficou, logicamente, bastante nervosa e traumatizada”, escreveu o juiz.
A decisão causou revolta da sociedade como um todo e até críticas por parte de famosos. A vítima afirmou à Jovem Pan Online, na época, ter “se sentido um lixo”. Após este episódio, mais casos passaram a ser noticiados quase que diariamente pela imprensa, muitos deles sem resolução.
A promotora Fabíola Sucasas ressalta que não é apenas a falta de punição que gera mais casos, mas sim a ausência de uma resposta imediata. “Nós sabemos que quando a Justiça tarda, ela falha. É preciso repensar não só na pena que se dará ao agressor, porque a pena tem o caráter preventivo, mas também temos que repensar as respostas processuais. Quando falo de resposta processual foco em eventual prisão, eventual impedimento de se colocar a vítima e agressor em mesma mesa para se reconciliar (…) É claro que nós precisamos nos aparelhar para que essa resposta seja uma que não cause revolta à sociedade civil, porque a sociedade tem visto que precisamos repensar quais são essas medidas”.
Faltam políticas públicas?
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública esclarece que os policiais civis do Estado passam por aulas específicas para prestar um melhor atendimento às vítimas, além de cursos de atualização sobre o assunto através do Projeto Integrar – parceria entre o Ministério Público, por meio do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid) com a Secretaria.
Enquanto isso, a Procuradoria Geral de Justiça realizou comissão para discutir e apresentar projeto de lei sobre molestamento sexual, e apresentou a proposta definindo tal ato. “Neste sentido é preciso destacar que essa proposta é de um crime subsidiário, ou seja, se for adequado a um crime mais grave, aí apreciamos como crime mais grave”, explica a promotora.
É preciso repensar condutas
Quando falamos em políticas públicas há o foco em ações para diminuir, prevenir e reprimir tais atos, mas, além de olharmos para o perfil do agressor, é preciso que observemos o perfil da sociedade, da vítima, além da medição do problema, onde ele mais ocorre, quais mulheres que mais utilizam tal transporte, os horários em que os crimes são mais recorrentes, quem são as pessoas mais vulneráveis, entre outros pontos.
“Quando se trata da questão ampla de gênero estamos ainda sob o que chamamos da ‘cultura do estupro’. E o assédio, desde sua menor potencialidade ofensiva até o abuso sexual em sua maior potencialidade ofensiva, está inserido nesta cultura. Esta cultura é justamente aquela que aponta comportamentos que silenciam ou normalizam a violência sexual contra a mulher, porque essa violência é muitas vezes normalizada, romantizada, alvo de piadas”, aponta Sucasas.
É preciso, portanto, olhar a nossa cultura, e repensar as condutas que caracterizam essa cultura do estupro. Ou será que estamos ensinando mulheres a se comportarem de determinada forma e deixando de olhar a conduta do agressor? O questionamento é feito a todo momento, não só pela sociedade, mas por especialistas.
Por que as vítimas não denunciam?
Medo, vergonha, “isso não está acontecendo comigo”, “denunciar não vai levar a lugar nenhum”, “e se o agressor estiver armado?”. Esses são apenas alguns dos pensamentos que passam pela cabeça de uma mulher abusada sexual ou fisicamente – seja em casa, no trabalho ou no transporte público.
Por sua vez, o autor da violência não parece se intimidar e acredita que nada irá acontecer com ele, já que as penas, pelo menos aparentemente, são brandas. Além disso, muitas vezes ele é visto como alguém que tem um problema mental, o que patologiza a violência.
“Mesmo reconhecendo que o homem é agressor, ainda assim se coloca em dúvida a sua responsabilidade (…) Não é só a dignidade sexual da mulher que se viola, se viola o direito dela de utilizar o espaço público. A todo momento se força que ela se torne aquela mulher de 1940, bela, recatada e do lar”, explica Fabíola Sucasas.
A delegada de polícia titular da 2ª Delegacia de Defesa da Mulher de São Paulo, Jacqueline Valadares, esclarece, entretanto, que as delegacias não possuem atendimento psicológico, e possuem como finalidade a investigação criminal. “O que a vítima tem que esperar da delegacia é investigação criminal. O que fazemos de fornecer subsídios para as vítimas é dar encaminhamentos para outros órgãos que podem dar assessoria psicológica”, aponta.
Mulheres, não fiquem em silêncio
Em torno de 52% das mulheres que são vítimas de assédio dentro do transporte público ficam em silêncio, segundo a promotora. Mas não é apenas o medo que inibe uma mulher de denunciar, existe uma série de situações que paralisam a vítima. Entre as já citadas, há ainda o medo de represália por parte de um “reencontro” com o agressor no transporte público.
“A mulher precisa denunciar. O silêncio é um aliado do agressor. O silêncio é irmão da impunidade e caminha junto com a impossibilidade de transformação das pessoas e da própria sociedade. Se o silêncio for mantido, nós não conseguimos agir e nem reagir. É preciso que ela quebre esse silêncio, fazer denúncia para a polícia, se estiver dentro do transporte público, chamar a atenção que aquele fato está acontecendo, para que o agressor pare o que está fazendo, para que as pessoas no entorno possam ajudá-la”, recomenda Sucasas.
Jacqueline Valadares explica que as mulheres vítimas de abusos sexuais podem procurar as DDMs ou até mesmo delegacias “de bairro”, que possuem atribuições para investigar esse tipo de crime. “Vai ser feito boletim de ocorrência, oportunidade na qual ela vai receber as devidas orientações sobre procedimento naquele crime que ela está registrando. Alguns casos a vítima tem prazo de seis meses pra processar. Em outras hipóteses o inquérito é instaurado automaticamente e independentemente da vontade da vítima”, diz.
Caso seja necessário, a vítima é encaminhada para exames e tratamento no Hospital Pérola Byington, na região central da cidade. Em casos de denúncia pelo 180, a vítima será intimada e precisará comparecer à delegacia para corroborar o que foi denunciado.
Legítima defesa ou vingança?
Note: existe uma grande diferença entre o que se encaixa como uma legítima defesa da mulher e o que é caracterizado como uma vingança. Se a mulher comete uma agressão para repelir a agressão de quem a viola, está dentro da legítima defesa, desde que a agressão seja proporcional.
Entretanto, a recomendação é que a revolta não se transfigure em uma prática ilícita. “Se for para reagir, que se reaja em legítima defesa. Nós sabemos que a legítima defesa tem alguns requisitos, e quando a repulsa é realizada muito tempo depois deixa de ser repulsa e se torna vingança. Então é preciso cuidar para que não façamos justiça pelas próprias mãos”, destaca a promotora.
“A insegurança fica”
A Jovem Pan Online teve uma conversa exclusiva com Cíntia, que foi abusada sexualmente dentro do ônibus que fazia a rota Metrô Ana Rosa – Morro Grande. O caso ocorreu no dia 29 de agosto e teve repercussão nacional, o que pode ter ajudado muitas mulheres que são assediadas diariamente a denunciarem mais casos.