Professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, Oliver Stuenke acredita que kirchneristas podem pressionar por cancelamento do acordo
A troca de farpas entre o presidente Jair Bolsonaro e o kirchnerista Alberto Fernández representa o risco de uma relação bilateral ruim entre Brasil e Argentina e uma redução da relevância econômica brasileira no país vizinho. A opinião é do professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas Oliver Stuenkel.
Qual avaliação podemos fazer dessa rusga entre o presidente Bolsonaro e Fernández?
Primeiro, é preciso dizer que o resultado na Argentina tem um impacto importante sobre a dinâmica regional. Dentro desse novo contexto, de uma vitória do Fernández, a janela que a gente tinha para um alinhamento em temas grandes na região vai fechar.
Por parte do presidente, ele sabe que vai ser (mais) difícil cooperar com o governo Fernández que o atual. Mas o que acontece agora tem um fundo eleitoral. Fernández está em campanha e para ele é bom ser mencionado pelo Bolsonaro. Ele tem usado isso e sabe que pessoas moderadas, divididas entre ele e Macri, ficam horrorizadas pelo que Bolsonaro diz.
Mas o que muda em termos práticos caso ele seja eleito?
Não é inteligente atacar o candidato que provavelmente vai ganhar. Na diplomacia, a gente precisa se adequar à política interna de outros países e trabalhar com quem ganha a eleição.
Isso vai sobrar, como sempre, para o (vice-presidente Hamilton) Mourão, que já tem dito que haverá uma boa relação. Mas, obviamente, é um gostinho daquilo que pode haver no futuro: o risco real de uma relação bilateral péssima.
O que seria mais afetado?
A primeira área em risco é o acordo de livre-comércio com a UE. O pessoal do Fernández defende uma revisão, mas acham complicado pois haverá pressão dos kirchneristas mais radicais. Acho que isso aumenta o risco de não ratificação. Em segundo, tem a crise na Venezuela. A Argentina do Fernández não vai se alinhar à Venezuela, mas adotará uma posição mais cautelosa.
Seria uma posição mais próxima à da UE e do Uruguai?
Sim. Basicamente a posição uruguaia. E a terceira a relação bilateral em si. Que melhorou nos últimos meses, principalmente no combate ao crime organizado. Mas uma cooperação mais ágil e moderna deve acabar. A China, aos poucos, está superando a presença econômica brasileira na Argentina. Claramente há um risco. O confronto que o Bolsonaro promove pode ter impacto na influência brasileira na Argentina.
Seria raro na relação bilateral dois presidentes tão distantes ideologicamente?
Sempre foi algo funcional, mas nunca foi muito harmônico. O Néstor (Kirchner), por exemplo, se elegeu com ajuda do (ex-presidente) Lula, mas tem um episódio maravilhoso em que o Lula organiza uma reunião com todos os presidentes e o Néstor se atrasa para não aparecer na foto, pois não quer dar essa vitória simbólica ao Lula.
Mas o tipo de retórica que temos agora é sem precedentes desde os anos 80 e é um péssimo sinal. A partir do momento em que a relação bilateral entre Brasil e Argentina não funcionam, você não tem nenhum progresso em projetos regionais.
E o que esse avanço da esquerda representa regionalmente, em termos políticos-ideológicos?
A gente teve a onda rosa (no começo do século 21). Foi uma época que aumentou a visibilidade da região, graças ao cenário externo muito favorável. A partir da eleição do Macri, muita gente apostou numa onda de centro-direita. E pela situação no Uruguai e na Bolívia, a transição venezuelana que não chega, a contracorrente não tem sido tão forte e tão duradoura. Essa ideia articulada no Prosur, de uma década da centro-direita, isso não está ocorrendo.
Temos uma mistura. Tudo vai depender da posição da esquerda que voltar ao poder. Se vai ser uma esquerda mais “uruguaia”. Com uma postura mais radical, a Argentina terá dificuldades de lidar com o Brasil, com o (Sebastián) Piñera, com o (Mario) Abdo e até com o (Donald) Trump.